Por Chico Simões – abril de 2017
Voa o ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo de dois mil e dezesseis para dois mil e dezessete. Estamos em Pernambuco. Tudo indica que o futuro chegou… A Zona da Mata Setentrional, cantada e decantada por sua riqueza cultural, tem de tudo, menos mata. Eucaliptos avançam em gigantescas ondas sobre os canaviais, cada vez mais minguados. Aqui e ali, cidades sem cidadania crescem em consumismo e miséria como um aglomerado de problemas sem solução visível. Esgotos correm a céu aberto e neles brincam crianças, como se brincassem em um rio.
A região é campeã mundial em microcefalia, causada pelo Zika Vírus, criado em laboratório para combater pragas em monoculturas, mas que, pegando carona no mutante mosquito Aedes Aegypti, voa como uma peste medieval, desgraçando a vida dos habitantes pobres desta Zona da Mata. Indústrias multinacionais de fármacos e outros venenos fazem da região um laboratório macabro, onde seres humanos, mesmo ainda em gestação, são cobaias de experiências que fabricam doenças para vender remédios.
Essa é a terra onde viemos passar o Natal e o Ano Novo seguindo complexos grupos de Cavalo Marinho e alguns Mamulengos, por estradas fora do mapa, dentro dos canaviais. Nesse caminho mágico, onde, às vezes, nos perdemos, às vezes, nos encontramos com outros grupos de “sulistas”, como nós, também perdidos, também se encontrando com o Mamulengo, que se encontra com o Cavalo Marinho e seus mistérios.
Alguns personagens do Mamulengo parecem ter saído diretamente do Cavalo Marinho para a tolda; Mané Gostoso, Capitão João Redondo, Caroca, Catirina, Palhaço da Vitória, Jaraguá, a Morte e o Boi, entre outros. Os músicos, sobretudo o “banco” de Mestre Zé de Vina , tocam “baiano”, a mesma música e os mesmos instrumentos do Cavalo Marinho. Ou seja, não estamos pisando um chão totalmente desconhecido, mas, mesmo assim, pisamos devagarinho e pedindo licença para entrar no terreiro. Viemos beber a garapa do fantástico imaginário engenho da cultura popular. A benção, nossos ancestrais africanos, que para cá vieram escravizados! A benção, nossos ancestrais indígenas nativos! Marinheiros portugueses! Comediantes da comédia de arte! Mestres e brincantes do Cavalo Marinho e do Mamulengo!
Adentramos no terreiro do Cavalo Marinho com muita emoção, mas tentando manter a razão. Já fomos alertados por pesquisadores(as) mais dedicados(as) e rigorosos(as), como Érico José Souza de Oliveira no Livro A Roda do Mundo Gira , sobre a impossibilidade de uma pesquisa superficial dar conta de abarcar o fenômeno. Considerando que, de qualquer ponto de vista, abre-se um leque de possibilidades, obrigando o(a) pesquisador(a) a escolher um caminho e, ao fazê-lo, perder a visão do todo, que mistura teatro, dança, rito, magia, música, política, relações de trabalho… enfim, várias formas de expressão simbólica da vida em um só e múltiplo “brinquedo”.
Antes nos deparamos com um atraso sócio econômico que nos remete à Idade Média e ao Renascimento, onde não podemos falar de atraso cultural, dado a riqueza e popularidade das manifestações artísticas. Ali e aqui nos encontramos com François Rabelais, o genial escritor francês do século XVI, que descreveu sem véu de alegoria toda a exuberância da cultura popular de sua época; uma cultura visceral, escatológica, ácida, anárquica e carnavalesca, como a cultura popular da zona da mata pernambucana do século XXI.
A impressão que temos ao assistir uma apresentação de Cavalo Marinho é a de que o tempo parou, o mundo pirou, tudo está ao avesso, desnudado, escancarado. As relações de poder invertidas, a moral questionada e a religiosidade zombada. A morte é a única justiça possível e, mesmo assim, será desafiada e ludibriada pelos anti-heróis Mateus, Bastião e Catirina, trio fantástico que conduz um enredo tão complexo quanto as tramas da Commedia dell’Arte, antes de Carlo Goldoni registrá-la, engessando as personagens em um eruditismo burguês e estéril, transformando brincadeiras abertas à participação do público em apresentações espetaculares, onde atores se exibem para uma quarta parede chamada público, que deve permanecer educadamente calado dentro das salas de espetáculo.
Mas voltemos ao nosso tempo da eternidade mágica do Cavalo Marinho pernambucano e mergulhemos um pouco mais na noite do brinquedo. Uma vez começada a festa, parece não ter fim. O “banco” de músicos vai tocar “baiano” acompanhando trupés, maguios, toadas, loas, incelenças e vivas durante toda a noite. Esses músicos fazem a “trilha”, o caminho iluminado do som por onde podem desfilar mais de setenta figuras, cada qual com sua “partitura”, tão peculiar quanto característica, tão particular quanto universal. São seres de outro mundo, almas, demônios, espíritos encarnados, animais comuns e imaginários, tipos ou arquétipos sociais bem definidos e reconhecíveis. O Capitão Marinho é quem comanda a brincadeira, mandando chamar Mestre Ambrósio, um mascate, vendedor de “figuras pra tudo que é festa”. Depois de uma breve mostra da “imitação” das figuras realizada por Seu Ambrósio, o Capitão compra todas e contrata o Trio Mateus, Bastião e Catita para “tomar conta e dar conta” do terreiro. Então, retira-se para só voltar depois de meia noite com os Galantes.
O público se entulha sem distinção nem reservas, crianças de colo, idosos(as), grávidas e deficientes físicos disputam com jovens bombados(as), bêbados(as), operários(as), agricultores(as) e alguns turistas ou pesquisadores(as), um lugar para passar a noite assistindo esse complexo teatro musical. Em volta da roda, uma pequena feira já está armada. “Comes e bebes” alimentarão o público e os brincantes durante toda noite. Tudo feito com rigor e precisão e ao mesmo tempo, improvisado e frouxo, para permitir a novidade incorporada como atualidade a cada função. E “haja pau” e “bexigadas” e “bota bom, bota bonzim.” Começou o Cavalo Marinho. O orgânico será purgado sem pudor.
A noite embriagada embala brincantes e assistentes num vertiginoso e catártico ritual, onde espectro e espectador experimentam um amálgama que só a cultura popular tradicional, desde os tempos mais remotos, pode alcançar. O terreiro é o espaço aberto no tempo, o “não lugar” da “eviternidade”, onde a celebração se plasma, um portal por onde desfilam seres do inconsciente coletivo, cada qual com suas mensagens subliminares, que podem ou não serem decodificadas pelos observadores.
Contratado para tomar conta, o trio Mateus, Bastião e Catirina toca o terror no terreiro, com graça e persistência, perturbando os músicos e o público, estabelecendo o caos, até que o “Soldado da Gurita” venha estabelecer a ordem, prendendo o trio, para que “Mané do Baile” possa chamar os “Galantes”, as “Damas” e “Arrelequino” que, conduzidos pela Estrela Guia do Oriente e o Capitão Marinho, vão cantar e dançar em louvor ao recém-nascido Menino Jesus, que não aparece na história.
Mestres e brincantes são unânimes em dizer que o brinquedo vem do “tempo da escravidão”, o tempo que a oralidade alcança as histórias que precisam, mesmo sem precisão, contar. Ou são as histórias que alcançam os homens que precisam para serem contadas? Seres humanos escravizados foram moídos por engenhos, que foram moídos por usinas, que estão sendo moídas por fábricas de celulose de eucalipto. Mas o Cavalo Marinho não morre, porque se move pela fé, pela força intrínseca ao grupo comunitário que o compõe e com ele se identifica e, por ele, tanto vive quanto morre.
Aqui, a profecia glauberiana faz todo sentido: “cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore, mas uma linguagem em permanente rebelião histórica. Somente os intelectuais desligados da razão burguesa em consonância com os signos mais profundos dessa cultura popular é que configurarão um signo verdadeiramente revolucionário”.
Aos poucos, o Cavalo Marinho, que sobreviveu e resistiu, vai se transformando para se adaptar às novas realidades. Hoje, o pouco tempo para cada apresentação e outros fatores externos “prejudica” o brinquedo, segundo os(as) brincantes, deixando para segundo plano muitas “figuras” importantes, enquanto os trupés, maguios, danças dos arcos e passeios vão se sobressaindo. Figuras mascaradas com seus dramas ganham versões reduzidas para que as apresentações, que podem durar uma noite inteira, sejam feitas em uma ou duas horas.
De brinquedo de escravos(as) e trabalhadores(as) das lavouras da cana e do engenho, o Cavalo Marinho passou a ser praticado por outros(as) atores e atrizes, de outras formações culturais e propósitos. A brincadeira ganha, pouco a pouco, novos terreiros, e sai do ciclo natalino para se apresentar em qualquer época do ano. Nesse movimento assistimos um jogo de perde e ganha que, às vezes, assusta e, às vezes, anima os sujeitos dessa história sem fim.
Pura magia, o Cavalo Marinho está solto e, no trupé do trote, avança rumo ao futuro como o Boi, que, ao nascer do sol, vai viver sua paixão, será sacrificado, comungado e ressuscitará para que a brincadeira, como a vida, possa seguir sendo reinventada a cada apresentação.
Para o incômodo de folcloristas e puritanos(as) conservadores(as), o Cavalo Marinho, hoje, é praticado, não apenas fora do ciclo natalino, como também, fora dos terreiros do canaviais da Zona da Mata Pernambucana. Grupos de brincantes de Recife, Olinda, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília, que também beberam na fonte e no convívio com mestres(as) e brincantes e, “sem o verniz armorial que engessa o brincante e a brincadeira”, são alimentados pela tradição que, para sobreviver, precisa se adaptar às sempre novas exigências da atualidade, ou seja, morrer e ressuscitar.
Não sabemos se escolhemos ou fomos escolhidos. O certo é que brincamos teatro procurando dignificar a herança recebida dos(as) mestres(as), não apenas repetindo o que eles fazem, mas acrescentando a nossa própria visão de mundo, atualizando sem descaracterizar as brincadeiras no que elas conservam de essencial; uma estrutura ao mesmo tempo móvel e segura, resiliente, permitindo que o brinquedo sobreviva, adaptando-se ao tempo e ao espaço, para exatamente romper com eles e fortalecer sua existência na eternidade de São Saruê, “onde vive tudo que se imagina.”
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Fotos: Flávia Felipe